Revue de la B.P.C.
THÈMES I/2007
http://www.philosophiedudroit.org
mise en ligne le 26 avril 2007
______________________________________________________________________________________________________________
Professeur à l’Université de Porto (Portugal)
De longe vem a comunhão de saberes jurídicos e
literários.
Roland Barthes recordou, no seu L’Aventure
Sémiologique, que Direito e Retórica (Oberbegriff vizinho da Poética e das
Letras, ditas antes Belas Letras, antes mesmo de surgir a noção moderna de
Literatura) se imbricam à nascença, tendo esta surgido da necessidade de
persuasão dos juízes num caso judicial sobre propriedade de terras, no mundo
clássico. Nos nossos dias, muitos, como um García Amado e um Germano Schwarz,
insistem no Direito como Retórica.
O romano Ápio Cláudio, dito “o cego”, entra
simultaneamente para o panteão jurídico e literário. Neste, porque tido por
“fundador da literatura latina”. Naquele, porque pioneiro na publicação dos
formulários de processo.
A mesma coroa de glória literária e jurídica é
cingida pelo avô do nosso primeiro rei, Afonso X, o sábio: um fundador também
ele, nesses domínios, com Canções, como as de Santa Maria e com o Foro Real e
as Sete Partidas, entre outros...
No Renascimento, o projecto – infelizmente em
parte gorado – do Humanismo jurídico não é senão o de casar o direito e a
filologia: nuptiae iurisconsulti et philologiae.
Percy Bysshe Shelley afirmou que “Os poetas são
os legisladores não reconhecidos do mundo”. Contemporaneamente, Raquel Barradas
de Freitas diz: “todo o poeta deve ser legislador do mundo”. E Germano Schwartz
propõe uma inversão desses termos: “todo o legislador e decisor judicial seria
poeta do mundo”.
Friedrich Hoelderlin fora já mais longe ainda que todos, considerando que “aquilo que
permanece foi fundado pelos poetas”. Cremos que quer poetas-poetas, quer
juristas-poetas.
Em Portugal, António Ribeiro dos Santos
explicitaria as razões das suas musas serem literárias e jurídicas (apesar de,
infelizmente, não haver musa jurídica na mitologia): a leitura de Camões é
dieta para as leis, presume-se que indigestas. Reza assim o poema em que dá as
suas razões:
“Vós perguntais as
razões
Porque tenho noite e
dia
Sobre a meza em
companhia
As Pandectas e o
Camões:
He, se vós o não
sabeis,
Que a leitura do
Poeta
He correctiva dieta
Depois de ter lido
as Leis.”
Mas
se nas trovas do Elpino Duriense a literatura é já antídoto da aridez jurídica,
será o nosso contemporâneo Agostinho da Silva a poetar mais causticamente. Qualquer um de nós estará a ver retratado alguém seu
conhecido. Vejamos:
Só queria ser rico e para tal
Em vez de poesia fez direito
E curvou o pescoço pois sujeito
Ao mesquinho consenso que é fatal
Marinhou a gerente de estatal
E secretário de Estado foi perfeito
Até ganhou medalha e foi bem
feito
Mas não se viu ministro o que achou mal
Daí lhe adveio uma melancolia
Por todos que o tratavam bem sentida
E que em luzidas festas se traía
Ao recitar Camões em voz
tremida
Pois sempre no final lhe
saía
Para tão curto amor tão longa vida.
À roda de Teubner poderia interpretar-se a
relação dos subsistemas sociais jurídico e artístico-literário como de “mútua
irritação”. Mas, nem esta irritação é o que poderia pensar-se, nem só dela vive
a relação. Ela está muito para além...
Richard
Weisberg chega a conceber ambas em unidade, apesar da diferença:
“law and
literature, for all their disparities, are one”.
E contudo, as
nossas expectativas quanto ao Direito e quanto à Literatura são diversas:
pedimos a um ordem, decisão, medida; à outra beleza, sonho, transgressão, ou
pelo menos ludismo, em muitos casos. Só um
particular tipo de homo juridicus se diverte com o Direito (o “demandista” de
Torga, Les Plaideurs de Racine...); só um especial excêntrico o concebe para
transgredir. Mas... Há estetas e até virtuosos do Direito, e quanto a sonho...
as Constituições, desde logo, são utopias em artigos.
Democracia e Utopia é o titulo de um belo e
inspirador livro do Prof. Barbosa de Melo.
Quando Goethe diz, no Fausto, que lhe não
interessa mais “do Direito a Ciência”, que lhe interessará então? Não temos
dúvidas que a Poesia. Essa poesia do direito mesmo o positivista Teófilo Braga versaria em
livro.
Os estudos de Direito e Literatura comoveram já
juristas celebrados.
Jhering, anonimamente às vezes, sacrificou a
estes deuses. Jellinek também. Radbruch não deixou de considerar a matéria, e
até de se embrenhar pelas vizinhas áreas da iconologia e simbologia das artes
plásticas em Direito... O juiz americano Benjamin Cardozo advogava estas
conexões, chegando a pensar na interpretação dos textos jurídicos com o arsenal
da análise literária. Até o aparentemente frio e lógico Kelsen estuda Dante na
teoria do Estado, e não deixa de referir o mito de Midas na sua Teoria Pura do Direito.
Longe de serem uma flor na botoeira meramente
decorativa dos curricula e das investigações, estes estudos estão a florescer e
a ganhar raízes.
Pelo menos desde Ronald Dworkin que se sabe como
um processo judicial é afinal uma narrativa, feita de várias narrativas
adversas, e que a sentença é a conclusão,
o capítulo-epílogo (ainda que a estória consinta continuações... ou
recursos)..
No Direito Constitucional contemporâneo, não só
a hermenêutica constitucional se aproxima da hermenêutica literária, como a
aproximação geral, e substancial entre Constituição e Literatura é quase um
tópico corrente na mais alta literatura jusconsticional. Schwartz considera que
tanto os constituintes como os juízes seriam romancistas de uma obra-aberta
(para retomar Umberto Eco): a Constituição.
Obra-aberta mas impregnada de sentidos culturais
que socialmente fluem com a história é também a concepção desse Papa do Direito
Constitucional europeu, Peter Haeberle, para quem os poetas são fornecedores de
utopia que “orienta o sentido da realidade constitucional”. E o poeta e
constitucionalista catalão Héctor López Boffil sublinha (cito contudo em
castelhano):
“Si la poesia está en el orígen del orden
constitucional, también podría afirmarse que la poesia es un médio de interpretación
de los conceptos constitucionales”.
Nas suas três versões Direito na Literatura,
como Literatura e da Literatura, a dimensão literária do Direito não poderia
ter encontrado, no mundo moderno, no actual Estado constitucional e num mundo
de procedimentos e processos por vezes legitimadores até (como a Legitimation
durch Verfahhren, de Niklas Luhmann), melhores portas de entrada na
juridicidade que as referidas: constitucional e processual. O mais substancial
dos direitos substantivos, e o mais imediatamente adjectivante dos direitos
adjectivos. Mas José Calvo González, sempre fecundo em inovações reveladoras,
acrescenta mais um elemento, e decisivo, que nos permitimos reinterpretar: O
Direito com Literatura. Em que, harmonicamente, já se consumaram essas núpcias
sonhadas pelos humanistas, e em que a juridicidade e a literariedade (a obra de
arte literária) vão de par. Porque a busca do Justo é também bela, e, se pode
não ser fácil o empreendimento da busca da Verdade, pelo menos a verosimilhança
ajudará na busca da verdade material jurídica.
Há já vinte anos, nos EUA, a começar por
Harvard, grande número de Faculdades de Direito tinham adoptado já estes
estudos. A par dos de Direito e Humanidades proprio sensu, e outros de pendor
formativo. Falando apenas de Law and Literature, eram então 38 as Faculdades
(de entre 175) que já ofereciam esta disciplina.
E é tal a cobertura legitimadora destes estudos,
que começam de novo a aparecer peças processuais em verso.
Terminamos com este primoroso diálogo forense,
para mais redigido nessa língua que é “última flor do Lácio”:
Habeas
Pinho intentado
pelo advogado, poeta e senador Ronaldo Cunha Lima, que tivemos a honra de
conhecer este ano, no Congresso Ibero-Americano de Direito Constitucional:
Senhor Juiz:
(…)
O instrumento do "crime"que se arrola
Nesse processo de contravenção
Não é faca, revolver ou pistola,
Simplesmente, Doutor, é um violão.
Um violão, doutor, que em verdade
Não feriu nem matou um cidadão
Feriu, sim, mas a sensibilidade
De quem o ouviu vibrar na solidão.
O violão é sempre uma ternura,
Instrumento de amor e de saudade
O crime a ele nunca se mistura
Entre ambos inexiste afinidade.
O violão é próprio dos cantores
Dos menestréis de alma enternecida
Que cantam mágoas que povoam a vida
E sufocam as suas próprias dores.
O violão é música e é canção
É sentimento, é vida, é alegria
É pureza e é néctar que extasia
É adorno
espiritual do coração.
Seu viver, como o nosso, é transitório.
Mas seu destino, não, se perpetua.
Ele nasceu para cantar na rua
E não para ser arquivo de Cartório.
Ele, Doutor, que suave lenitivo
Para a alma da noite em solidão,
Não se adapta, jamais, em um arquivo
Sem gemer sua prima e seu bordão
Mande entregá-lo, pelo amor da noite
Que se sente vazia em suas horas,
Para que volte a sentir o terno acoite
De suas cordas finas e sonoras.
Liberte o violão, Doutor Juiz,
Em nome da Justiça e do Direito.
É crime, porventura, o infeliz
Cantar as mágoas que lhe enchem o peito?
Será crime, afinal, será pecado,
Será delito de tão vis horrores,
Perambular na rua um desgraçado
Derramando nas praças suas dores?
Mande, pois, libertá-lo da agonia
(a consciência assim nos insinua)
Não sufoque o cantar que vem da rua,
Que vem da noite para saudar o dia.
É o apelo que aqui lhe dirigimos,
Na certeza do seu acolhimento
Juntada desta aos autos nós pedimos
E pedimos, enfim, deferimento.
O juiz Roberto Pessoa de Sousa despachou:
Recebo a petição escrita em verso
E, despachando-a sem autuação,
Verbero o ato vil, rude e perverso,
Que prende, no Cartório, um violão.
Emudecer a
prima e o bordão,
Nos confins de um arquivo, em sombra imerso,
É desumana e vil destruição
De tudo que há de belo no universo.
Que seja Sol, ainda que a desoras,
E volte á rua, em vida transviada,
Num esbanjar de lágrimas sonoras.
Se grato for, acaso ao que lhe fiz,
Noite de luz, plena madrugada,
Venha tocar à porta do Juiz.
Deixamos o desafio às nossas tunas para, no
respeito pelos direitos de autor, musicarem estas peças.
Mas se acaso o preconceito cuidar que este tipo
de alusões literárias é coisa recente, e apenas floresce lá para as bandas das
Américas, recordemos-lhe apenas um texto – e que belo texto! A citação é um
pouco longa, mas nada nela se poderia truncar:
“Se fosse possível a um jurista particularmente
interessado pelas coisas do direito público entrar no sono da princesa da
fábula, não precisaria de deixar correr os cem anos para descobrir atónito que
à sua volta tudo mudou. Bastava-lhe ter esperado pelo desencanto dos últimos
vinte anos e verificaria que o seu castelo de construções e os seus servidores
estavam irremediavelmente perdidos submersos no silvado duma nova realidade,
perante o qual se encontravam indefesos. E o dramático, quase trágico, é que
não há forças benfazejas que rasguem novas clareiras e tracem novas sendas para
um regresso ao velho mundo, como numa readmissão no paraíso, e, apesar de tudo,
de muitos lados se nota o esforço para mergulhar na realidade com um arsenal
obsoleto e, pior ainda, com um pathos dissonante com os tempos. Como um cavaleiro
de elmo emplumado que galhardamente lançasse um repto a um carro de assalto”.
O citado trecho, literário em si e com
referência literária à Bela Adormecida, esse fundamente conto do nosso cânone
literário ocidental, aliás retomada por vários autores, como um François
Vallançon e um Gomes Canotilho, é do nosso querido Mestre Prof. Doutor Rogério
Ehrhardt Soares, no seu Direito Público e Sociedade Técnica, uma das mais
luminosas obras que tive o privilégio de ler durante a graduação, e que tem a
data de 1969.
______________________________________________
© THÈMES I/2007